domingo, 17 de fevereiro de 2013

Nono capítulo de “Vidas secas” (RAMOS, 1938) - Baleia


Fragmento:

Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.

Questões:
1.      A atitude de Fabiano é um ato humanitário?
2.      No trecho, há uma animalização do personagem, a qual se contrapõe a relativa humanização da Baleia?
3.      O cenário apresentado relata fielmente a vida na seca e as condições sociais do Nordeste brasileiro?
4.      Existiu tentativa de homicídio por parte de Fabiano?

Maldita seca que racha o chão de meu querido sertão
Que afasta seus filhos
Dor tão doida de deixar a terra natal
Terra tão querida
Ao mesmo tempo tão árida
Árida como os rostos que vejo nas janelas
A olhar o céu...


No que pertine a temática levantada nos trechos acima, percebe-se a dura realidade da seca e as reações causadas em decorrência da terra infértil, bem como de todo o cenário de inquietações, incertezas e angustias humanas, capazes de culminar em momentos de animalização ou coisificação do próprio ser humano, como nos trechos: “Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia (...)”, bem como em: “Árida como os rostos que vejo nas janelas”.

E, ainda, pode-se encontrar atribuições de características humanas a animais ou coisas: “A cachorra espiou o dono desconfiada”, e “A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente”.

No trecho de Ramos (1938), diferentemente do que ocorre no poema de Pessôa - em que há uma comparação entre o homem e os fatores naturais e inominados da seca, o que perdura é as nuanças comportamentais de Fabiano e de Baleia, enquanto aquele se aproxima de atitudes desumanas, essa se enche de dissabores próprios da humanidade (utilização de prosopopeia e metáforas). Interessante ainda perceber que, os verbos empregados nas passagens de Fabiano: examinou, aborrecido, saltou, adiantou-se, dentre outros, retratam movimentos de caça, que são ratificados pela expressão repetida: “levou a espingarda ao rosto”, fator esse que circunda todo o capitulo ‘Baleia’, o momento de reconhecimento, outro de ação, o momento de fuga, o de recolhimento à morte, dentre outros. A prosa, albergada em terceira pessoa, traz diversos demonstrativos de elementos típicos do sertão: ‘pé de turco’, ‘cerca do curral’, ‘catingueiras’, etc. O trecho escolhido inicia um contexto trágico à Baleia, e propicia a indagação do que move o homem diante das dificuldades da seca. Nos dizeres de Sarmento (2011):
(...) o interesse crítico continuamente despertado por essa obra, indo da leitura mais vinculada às posições da esquerda até chegar mesmo a uma visão neoliberalizante do problema. Com isso quero dizer que, utopias à parte, pode-se não ver saída, a não ser do ponto de vista do imaginário (a única saída permitida a tais personagens), para aquela família de retirantes, em uma existência francamente hostil, que recebe, no entanto, a simpatia de um narrador complacente, que, ainda assim, não abdica da visão de um sujeito que nunca teve de passar por aquela situação e por isso resguarda sua superioridade interpretativa.

Já no concernente ao poema de Pessôa há, inicialmente, o apego a ‘maldição do sertão’: “Maldita seca que racha o chão”, e suas consequências: afastamento dos filhos. Em seguida, a autora utiliza-se da repetição de flexões da palavra ‘dor’, enfatizando a dificuldade de deixar a terra de nascituro, devido a situação posta pela seca. Interessante observar que, a expressão: “Terra tão querida”, quando da construção do poema, encontra-se no meio dos demais versos, e abranda os acontecimentos anteriores, bem como o posterior, opondo-se a esse: “Ao mesmo tempo tão árida”. Posteriormente, tem-se: “Árida como os rostos que vejo nas janelas”, a seca caricata no rosto dos retirantes, as expressões marcadas pelas cisões da vida, o caminhar continuo de uma rachadura que só tende a abrir mais, os rostos carregam as perdas de pessoas, propriedades, animais, etc. E, como desfecho, apresenta-se a passagem: “A olhar o céu...”, com isso, pode-se inferir que, ao sertanejo ainda resta o azul do céu, que remete a esperança, diante de toda situação ainda se faz valido olhar para o céu e manter a crença em dias melhores, uma vez que, a vida não teve fim e a vivência da seca é um circulo dinâmico, tal qual atribui a continuidade proveniente das reticências. 

Bibliografia:

PESSÔA, Letícia. Disponível em: http://pensador.uol.com.br/autor/leticia_pessoa/ Acesso em: 05 de fevereiro de 2013.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas, 82ªed. Rio de Janeiro: Record. 2001. p. 85-91.

SARMENTO, Roberto (07/04/2011). Professor Doutor. Entrevista a Leonardo Campos sobre a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos. 2011. Disponível em: http://www.passeiweb.com/saiba_mais/atualidades/1244551152 . Acesso em: 05 de fevereiro de 2013.